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Angola

O Estandarte traz consigo uma memória de fé e esperança 

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Bispo Emílio de Carvalho

Na tarde de 26 de Novembro, uma equipa d’O Estandarte e da Rádio Kairós visitou o Bispo Emílio de Carvalho e a sua esposa Marilina de Carvalho, no Nova Vida. A equipa procurava a permissão para publicar um artigo da sua autoria, escrito em 2004, que traça uma linha de tempo do jornal desde o arranque até à sua interrupção. Autorização concedida, o Bispo leu o artigo em voz alta vinte anos depois de o ter escrito.

Notas do Bispo Emílio Júlio Miguel de Carvalho sobre O Estandarte, a 1 de dezembro de 2004

O Estandarte foi fundado há 91 anos, no longínquo dia 1 de dezembro de 1933. Surgiu como “o pregoeiro cristão dos Bairros” e como “órgão e propriedade de um grupo de crentes evangélicos africanos portugueses”. No Natal de 1947, o subtítulo passou para “órgão e propriedade de crentes evangélicos angolanos”. O jornal completava, então, 14 anos de actividade. O Reverendo e professor Gaspar de Almeida dirigiu o jornal desde a data da sua fundação, através de todos os sacrifícios imagináveis.

O Estandarte tinha como finalidade, segundo se expõe no editorial inaugural – Aos que nos lerem -, “levar as boas novas de salvação a todos os que labutam neste Continente Africano do Ocidente, sem distinção de cores”. Um objectivo de curto alcance, para um jornal que se pretendia, na realidade, de maior projecção, como veio a acontecer.

Lançado na luta pela defesa dos princípios que constituem a base fundamental da nossa salvação, presente e futura, o editorial avançou afirmando que a luta era “pelo levantamento da nossa raça, pela verdade sob o ponto de vista religioso, pela moralização dos costumes e pela pacificação da família angolana.”

Procurando alargar o escopo dos seus objectivos, o editorial aventurou-se em penetrar um pouco mais no âmago, afirmando-se “disposto a buscar acordar em cada um dos leitores o eco adormecido das suas consciências e lembrar-lhes dos seus deveres e dos seus direitos como cidadãos, para com a Pátria e a religião”. O jornal surgiu tendo por divisa Cristo e por código a Bíblia. Através da sua história, O Estandarte manteve-se fiel a esses objectivos e foi introduzindo no seu corpo as mudanças que o tempo aconselhou. 

Em 1933, o Corpo Directivo estava assim constituído: Director – Gaspar de Almeida; Redactor – António Victor de Carvalho; Secretário da Redacção – João Sebastião Rodrigues; Administrador – Domingos Francisco da Silva. Em 1934, Sebastião Gaspar Domingos toma o lugar de Administrador e Domingos Francisco da Silva, o de Redactor. Em Março de 1947, António Victor de Carvalho foi nomeado Administrador, função que acumulou com a de Redactor principal do jornal. Em Março de 1950, a seu pedido, António Victor de Carvalho deixa de fazer parte do corpo redactorial. Em Maio de 1950, Gaspar de Almeida passa a director e administrador, com colaboradores diversos. Durante a sua ausência, em Portugal, o jornal fica nas mãos do Reverendo Júlio João Miguel, António Victor de Carvalho e de outros. O mesmo Victor de Carvalho volta a desempenhar as funções de redactor principal em Janeiro de 1953, altura em que Sebastião Gaspar Domingos volta a ser administrador e Nobre Pereira Dias assume como Secretário da Redacção. Em 1955, Mateus Manuel da Silva é nomeado o Secretário de Redacção. Em Outubro de 1957, é chamada Deolinda Rodrigues de Almeida para ocupar o cargo de Secretária da Redacção, cargo que é pela primeira vez ocupado por uma mulher. Em 1959, ano em que Deolinda Rodrigues de Almeida seguiu para estudos no Brasil, Isac Aço é nomeado Redactor do jornal e Raúl Matoso é indicado como Secretário da Redacção. Em 1960, Emílio de Carvalho é nomeado Redactor principal, tendo como Secretário Aurélio Diogo da Silva Coimbra e Administrador o Reverendo Manuel Francisco Abrigada. 

Quando o jornal é publicado novamente em Janeiro de 1975, o Reverendo e professor Gaspar de Almeida ainda era Director e Alberto Marques, o Administrador. Nessa altura, Roberto Ernesto Webba era o Redactor do jornal.

A actividade do jornal O Estandarte esteve condicionada à Comissão de Censura do regime colonial e cada exemplar tinha de trazer a afirmação “visado pela Comissão de Censura”. Muitos artigos e notícias não foram publicados ou foram simplesmente amputados e vetados por essa famigerada Comissão, que implementava assim as directrizes recebidas das autoridades coloniais. Dou apenas um exemplo: um dos artigos “mandados retirar” pela Comissão de Censura, em Outubro de 1938, tinha como título “Será Verdade?”, de Fernando Pamplona. Foi escrito na altura em que o presidente da República Portuguesa visitou as colónias e, com ele, veio esse jornalista, enviado especial do “Diário da Manhã”, órgão da União Nacional. Ao chegar a Benguela, onde foi prestada calorosa recepção ao presidente, ele escreveu algumas crónicas de viagens, dentre elas “Ao Sol do Império”, de 25 de Agosto de 1938. Esse artigo foi acusado de conter calúnias que comprometiam a acção do governo naquela província… e, por isso, o artigo foi mandado retirar pela Comissão de Censura!

Entretanto, O Estandarte veio a tornar-se num jornal muito popular. As notícias contidas nas secções sobre Carteira Íntima, Visitas, Pela Seara do Senhor (notícias enviadas das partes mais longínquas de Angola), dos nossos Correspondentes, Aniversários, Falecimentos, Casamentos, os que pagavam por suas assinaturas, comunicação aos correspondentes, Lições para as Escolas Dominicais, notícias das Classes de Luanda, etc., constituíram a única forma pela qual as pessoas podiam ver os seus nomes alguma vez publicados num jornal. Suas edições foram enviadas para além das fronteiras de Angola, para as antigas colónias portuguesas, Portugal, Brasil, EUA e para vários outros países, para onde chegavam à mercê da Comissão de Censura. Isso, para não falar das publicações que eram enviadas ao jornal O Estandarte pelos correspondentes de órgãos de imprensa do estrangeiro.

Mas, a actividade do jornal não foi fácil, em virtude dos problemas financeiros que enfrentava. A partir de 1941, O Estandarte lançou vários apelos financeiros, pois sempre viveu das contribuições dos seus assinantes e muitas despesas eram pagas dos bolsos dos membros do seu corpo directivo. “Crentes evangélicos acudi o vosso jornal!” foi o apelo lançado em Maio daquele ano. Em 1948, quinze anos depois da fundação do jornal, novo apelo foi lançado com o fim de tirar o jornal da grande dificuldade em que se encontrava. Em 1952, O Estandarte era o único jornal dos africanos publicado em Angola, e isso para além de realçar a queda jornalística dos angolanos, ainda que no meio da repressão colonial, dava aos crentes evangélicos angolanos um certo poder executivo que enaltecia a Religião e honrava o nome de Jesus Cristo. E, quando em sentido “dos nossos conterrâneos e patrícios porem de parte as coisas velhas dos nossos avós, a fim de espancar as trevas e libertar o povo da escravidão espiritual e social”. 

Para além dos nomes tradicionais então conhecidos, começaram a surgir nas páginas do jornal artigos de António Agostinho Neto, Pedro Agostinho Neto, João Miguel de Carvalho Neto, Jacinto António Pascoal Fortunato, Manuel Domingos da Silva Lemos, José Belo Chipenda, Deolinda Rodrigues de Almeida, André Luis Manuel Neto, Liambumba, Geraldo Manuel Xavier, António Kimbazi (filho), Sequeira João Lourenço, Paulo dos Santos Matoso Neto, Francisco Raúl dos Santos Matoso, Job João Miguel de Carvalho, Francisco Raimundo de Sousa Santos, Pedro A. Filipe, Emílio Júlio Miguel de Carvalho, Artur Ruben Sicato, Simão João Cardoso, Sílvio Paulo de Almeida, Adriano João Sebastião, Horácio Augusto da Silva Coelho, Marcolino Pitra, Roberto Victor Francisco de Almeida, Loide Ana de Almeida, Roberto de Carvalho, José Augusto Prata e tantos outros, que ao jornal prestavam contribuição valiosa, trazendo para as suas páginas reflexões sobre assuntos candentes da actualidade. 

As relações com outros órgãos da imprensa escrita (que não eram muitos na época) variavam. Manteve alguma polémica com o jornal O Apostolado, pelas suas críticas em relação à obra da Missão Evangélica em Angola. A assinatura da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, em Maio de 1940, também mereceu alguns reparos. Outras reacções do jornal em relação aos artigos que criticavam a obra das Missões Protestantes em Angola ou que contradiziam princípios perfilhados pelo O Estandarte, de onde quer que esses órgãos fossem publicados, foram também motivo de críticas.

E vieram as dificuldades. A partir de 1959, o jornal não saía com a regularidade desejada. A razão disso prendia-se ao facto de as pessoas que nele trabalhavam não terem tempo, por causa dos seus deveres profissionais, e também porque não era fácil a obra da imprensa evangélica numa atmosfera que lhe era hostil. Por outro lado, a falta de material de publicação, o facto de não ter qualquer interesse espiritual ou geral o material que era remetido ao jornal, também colocaram impedimentos à continuidade da publicação do jornal. A repressão colonial também estava na base da falta de regularidade na publicação do jornal, pois a Comissão de Censura fez do jornal uma vulgaridade. Apelou-se para que fossem nomeados correspondentes regionais para debelar o problema da falta de material para publicação. Faltava material e o jornal estava limitado a publicar “extractos” de outros periódicos.

Depois de Setembro de 1961, houve um “interregno forçado” de 14 anos! Elementos imprescindíveis à publicação do jornal tinham sido presos pela Polícia Política Portuguesa. Refiro-me especificamente aos Reverendos Gaspar de Almeida e Emílio Júlio Miguel de Carvalho, e os que tinham ficado fora das cadeias estavam manietados pelo medo e pelo terror. Em 1963, uma exposição do ainda director Reverendo Gaspar de Almeida ao governador-geral a solicitar a sua publicação foi indeferida pelo Despacho de 17 de Maio. O jornal só foi publicado novamente em Janeiro de 1975. Com o 25 de Abril e a descolonização, foi possível  O Estandarte reaparecer “na luz doutra manhã”, mais aberto, mais livre. Cantava as glórias da libertação de Angola! Houve uma alteração significativa nas relações entre o Estado (Governo) e as Igrejas Evangélicas em Angola. Não havia mais problemas a ultrapassar, senão o das tipografias locais, que não se encontravam disponíveis a publicar o jornal com a regularidade que se esperava. O problema ideológico era susceptível de ser ultrapassado.

O Estandarte reapareceu na Hora da Verdade, depois do silêncio involuntário de 14 anos. Ressurgiu na era da Unidade do Protestantismo Angolano, pois previa-se já a formação de um organismo de unidade, de um Conselho Cristão em Angola, em que as Igrejas poderiam colaborar unidas, na evangelização e na construção integral da Nova Nação Angolana, que se avizinhava a passos largos. O jornal poderia servir de elo entre todos os cristãos evangélicos de Angola (esse continuava a ser o objectivo fundamental do jornal), a tribuna de diálogo para a destruição de barreiras naturais e artificiais que nos separam.

Mas, isso foi sol de pouca dura, pois em Setembro de 1977 foi o fim! Há cerca de três anos, ainda se tentou o reaparecimento do jornal, mas a tiragem não agradou e ficou-se por isso.

Hoje, vinte e sete anos depois, pensa-se em voltar a publicar O Estandarte. A ideia é louvável. Porém, há de se pensar num corpo redactorial credível e competente, no meio da imprensa escrita angolana, que represente os “cristãos evangélicos” em Angola. Também há de encontrar os meios que garantam estabilidade financeira do jornal a longo prazo, bem como as fontes de onde irá sair o material a ser publicado. De igual modo, há de se equipar convenientemente o corpo redactorial dos meios necessários ao desempenho de suas funções e montar estruturas adequadas à operacionalidade do jornal. E essa tarefa não será fácil! Porém, com a ajuda de Deus e com a colaboração de todos, atingir-se-ão os objectivos desejados.

Finalmente, deixem-me agradecer ao Reverendo e Professor Gaspar d’Ameida pela visão que teve ao fundar O Estandarte e pelo heroísmo demonstrado no decurso dos 44 anos em que foi o director do jornal, dando a sua vida e o seu saber, e, muitas vezes, o seu dinheiro, enfrentando os verdugos da Comissão de Censura, por amor ao Evangelho. Hoje, quando a visão e o discernimento continuam sendo suas principais características pessoais, e que a idade não lhe roubou ainda, considerámo-lo como um marco visível da resistência férrea ao colonialismo na nossa terra.

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